terça-feira, 30 de março de 2010

D. Paula - machado de Assis

Resumo

Este artigo busca elucidar como Machado de Assis desenvolveu o tema da memória nos
contos “Dona Paula”, “Missa do Galo” e no romance “Dom Casmurro”. No conto “Dona
Paula”, podemos encontrar uma complexa relação entre a memória, o inconsciente e o
conteúdo emocional da memória. Em “Missa do Galo”, Machado cria um narrador capaz
de relatar uma vivência passada, mas que, ainda assim, não toma consciência do sentido
não verbal do episódio vivido; todavia, no momento em que o narrador expressa sua
experiência, ele anuncia nas entrelinhas e no estilo narrativo esse sentido não verbal. E
no romance “Dom Casmurro”, observamos como Machado representou a memória não
como coisa fixa, mas como algo que pode se alterar e se reorganizar pela linguagem
expressiva e se deformar pela imaginação e por fatores inconscientes.
P alavraschave:
memória; Machado de Assis; história da psicologia.
A bstract
This paper intends to elucidate the conceptions of memory in the work of Machado de
Assis. For that, we analyzed the short stories “Dona Paula”, “Missa do Galo” and the
novel Dom Casmurro. In the short story Dona Paula, there is a complex relationship
between memory, unconscious and the emotional content of memory. In “Missa do
Galo”, we observed the phenomenon in which a person remember an experience of his
life but does not comprehend the nonverbal
meaning of it; however, when the narrator
expresses his experience, he announces the emotional content indirectly in his narrative
style. Finally, in the novel Dom Casmurro, Machado develops a concept of memory that
is not something fix, but something that can be deformed and reorganized by
imagination, unconscious, language an by the intention with which memory is examined.
Keyw ords: memory; Machado de Assis; history of psychology.
I ntrodução
Neste artigo, buscaremos contribuir ao aprofundamento da temática da memória na obra
de Machado de Assis (1). Para isso, centramos nossas análises em revelar como, para o
autor, muitos dos fenômenos relativos à memória não podem ser compreendidos
isoladamente, sem se levar em conta a totalidade psíquica e existencial do indivíduo. E
buscaremos mostrar como a Machado articula a memória com a noção de inconsciente.
Isso porque, como veremos, o ato de se rememorar uma vivência está sujeito a uma
série de fatores que deformam, redimensionam, resignificam
essa vivência passada.
Assim, lembrarse
não significa replicar na mente a vivência, mas em revivenciar
o
vivido. Fazse
necessário, portanto, conhecer dentro de que condições, com que
intenções e como homem voltase
para o seu próprio passado.
Podemos observar, em diferentes âmbitos, que Machado de Assis teve um grande
interesse pela memória. De fato, o restante do acervo da Biblioteca de Machado de Assis
indica, pelos livros ali encontrados, que Machado de Assis muito se interessava tanto pela
psiquiatria e pela psicologia, e que tinha um especial interesse na faculdade da memória.
Destacase
a obra aí encontrada Les Maladies de la Memoir (1881/1936), de um famoso
psiquiatra francês da época Th. Ribot (18391916).
O conteúdo desta obra, publicada em
1881, é significativo, pois foi inspirado nela que Machado de Assis teceu o conto: “O
lapso”. A relação entre esta obra de Ribot e tal conto foi pormenorizadamente analisado
por Barbieri (1998) em seu artigo “O lapso ou uma psicoterapia do humor”. Podese
dizer que o conto foi feito como uma paródia da obra psiquiátrica de Ribot e revela,
juntamente com contos como “O alienista” a posição de Machado de Assis frente à
psiquiatria.
O interesse de Machado pela memória revelase
tanto por meio do conteúdo de
romances e crônicas, quanto pelos livros de psiquiatria que fizeram parte de sua
biblioteca particular (Jobim, 2001). Além disso, em dois dos romances mais importantes
de Machado, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, os autores ficcionais
buscam resgatar da memória o seu passado a fim de relatar ao leitor as suas próprias
vidas. Neste artigo, buscaremos abordar o tema da memória mediante a análise de
“Dona Paula” publicado pela primeira vez em 1884, “Missa do Galo”, em 1894, e Dom
Casmurro, em 1900. Selecionamos estas obras ficcionais como objeto porque cada uma
delas complementa a análise das outras, de tal modo que, juntas, permitemnos
transmitir um panorama mais completo das reflexões do autor sobre o tema.
Dona P aula: “ o esqueleto da história, sem a alma da história”
O conto “Dona Paula”, publicado em 1884, ajudanos
a compreender como Machado
trabalhou o problema da carga emocional contida na memória.
Venancinha e Conrado estão casados há pouco tempo. Mas o matrimônio é abalado por
um “galhardo rapaz” que, chegando da Europa, começa a flertar com a moça,
convidandoa
ao adultério. O marido percebe o flerte, revoltase,
ameaça separarse
da
esposa, razão pela qual sua tia, Dona Paula, encontraa
aos prantos e resolve dar um
jeito na situação. Vai ter com o sobrinho e apresentalhe
a seguinte proposta: “Você
perdoalhe,
fazem as pazes, e ela vai estar comigo na Tijuca, um ou dois meses; uma
espécie de desterro. Eu durante este tempo, encarregome
de lhe pôr ordem no espírito.
Valeu?” (“Dona Paula”, Machado de Assis (2004a, p.558). Ao deixar a casa, o marido
revela a Dona Paula o nome do homem que estava convidando sua esposa à valsa do
adultério: Vasco Maria Portela. Ao escutar o nome, Dona Paula empalidece, mas logo se
recompõe este
rapaz era filho de um homem com quem, na época de sua mocidade,
ela havia tido um caso extraconjugal, e “enchido a taça das paixões”. E agora,
ironicamente, cabia a ela missão de restaurar moralmente a sobrinha. É a partir desta
situação, meticulosamente construída, que o narrador irá analisar as contradições
interiores de Dona Paula:

Vestido de Noiva - Nelson Rodrigues

Resumo da obra


O universo dramático de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, é a classe média carioca nas imediações dos anos quarenta. Nessa sociedade, predomina a hipocrisia, os preconceitos e os símbolos eleitos pela cultura judaico-cristã como eternos em relação à família e ao casamento.

A peça inicia com buzina de automóvel, barulho de derrapagem violenta, vidraças partidas, sirene de ambulância. O cenário é dividido em três planos, que o autor denomina: alucinação, memória e realidade. Os sons ouvidos referem-se ao atropelamento de Alaíde, que é levada a um hospital.

O plano da realidade encena a luta de Alaíde contra a morte, em estado de coma, na mesa de operação, bem como os acontecimentos que sucedem o atropelamento: a movimentação dos repórteres, a reclamação de uma leitora de um jornal sobre o abuso de velocidade dos automóveis, a conversa do marido, Pedro, com os médicos, a morte da protagonista, o velório, o luto dos parentes, e finalmente o casamento de Pedro com Lúcia, irmã de Alaíde.

Os planos da memória e da alucinação apresentam no início da peça uma certa definição, para irem-se interpretando à medida que a ação evolui. Esses dois planos são projeções exteriores do subconsciente de Alaíde, uma mulher inconformada com a condição feminina na classe média alta carioca, o que provoca nela um desejo irresistível de transgredir: como se tentasse realizar-se adotando as regras de um jogo adverso, ela seduz todos os namorados da irmã, e acaba casando-se com o último deles, Pedro. A irmã promete vingança, e, depois de algum tempo, quando o casamento entra naquela fase de tédio, trama com Pedro a maneira mais extremada de descartar Alaíde: seu assassinato.

Alaíde, nos dias que antecedem o acidente, parece desconfiar que estava jurada de morte, e, enquanto definha na sala de cirurgia, tenta reconstruir em sua mente os acontecimentos passados, misturando-os ao seu delírio, à satisfação dos desejos reprimidos.

O principal símbolo da libertação feminina é para ela Madame Clessi, uma prostituta do início do século que havia residido na casa em que então moravam seus pais. Diante do propósito dos pais de incinerarem os pertences da cafetina que haviam ficado no sótão da casa, Alaíde consegue resgatar o diário dela, e fica conhecendo detalhes de sua trajetória, complementados com recortes de jornais da época encontrados na Biblioteca Nacional.

Em sua alucinação, misturada com a memória, Alaíde encontra na figura de Clessi apoio para a reconstrução dos fatos passados e da revelação subconsciente de seus desejos, entre os quais o assassinato de Pedro, como retaliação à trama macabra que ele perpetrara de acordo com sua própria irmã.

Neste universo social, a permissão da vivência sexual para a mulher só ocorre de uma entre duas maneiras: ou ela se casa de acordo com os preceitos religiosos e sociais, ou ela transgride tudo, tornando-se prostituta. No caso de Alaíde, ela acaba conseguindo ter acesso ao sexo na vida real e uma tentativa no subconsciente, em sua amizade com Clessi.

Inconformada com as convenções sociais repressoras da mulher, Alaíde não consegue em vida opor-se a elas, mas consegue manipular as pessoas com seu poder de sedução. Perto da morte, seu desejo de transgressão toma corpo e salta aos olhos nas cenas em que se torna amiga da prostituta e consegue inclusive matar, com a maior frieza, o marido traidor.

Ninguém presta, nesta peça: Alaíde é neurótica e oportunista, Pedro e Lúcia são presumidos assassinos e hipocritamente se casam, com o consentimento dos pais de Lúcia e da inexpressiva mãe de Pedro.

Alaíde é a protagonista de Vestido de Noiva. É uma mulher insatisfeita e inconformada com a condição feminina. Seduz os namorados da irmã como uma tentativa de auto-afirmação, que a faz parecer melhor aos próprios olhos. É como ela diz a Lúcia, em tom de provocação: "Eu sou muito mais mulher do que você - sempre fui! Após conquistar Pedro, que se torna seu marido, demonstra um certo desinteresse e frustração pela vida de casada, ao mesmo tempo em que se sente ameaçada de morte por Pedro e Lúcia. O atropelamento é um desfecho trágico da tensão dos últimos dias da protagonista, e tanto pode ser suicídio como acaso ou assassinato. Em seu delírio e lembranças, reconstrói no subconsciente as injustiças de que se julga vítima e revela seu fascínio pela vida marginal de Madame Clessi.

Lúcia, irmã de Alaíde, aparece em quase toda a peça como Mulher de Véu. É uma pessoa também insatisfeita, incompleta, que vive atormentada pelo sentimento de ter sido passada para trás pela irmã. Parece ter conseguido uma grande vitória com a morte de Alaíde e seu casamento com Pedro, mas as cenas finais sugere que ela não estará melhor em seu casamento do que Alaíde em seu túmulo.

Pedro é o elemento dominador, é quem manipula as mulheres para conseguir o que quer. Namora Lúcia inicialmente, deixa-se seduzir por Alaíde, com quem se casa pela primeira vez, e depois concebe um plano macabro de eliminar a esposa para retornar aos braços da irmã. É o industrial bem sucedido, que representa o bom partido para as moças casadoiras que conseguirem fisgá-lo, mesmo sabendo que viveram à mercê do macho opressor.

Madame Clessi é a prostituta do início do século que povoa a mente de Alaíde, desejosa de viver um mundo de sensações picantes. Ela havia residido na casa de Alaíde décadas atrás, e os pais da protagonista resolvem queimar seus pertences, alguns dos quais são salvos, inclusive o diário. Clessi representa (para Alaíde) o ideal de mulher liberada, que agride a sociedade hipócrita que Alaíde nega, mas na qual ela transita.

Os demais personagens desempenham papéis secundários, como o namoradinho adolescente de Clessi, que a assassina com uma navalhada, e os pais de Alaíde e Lúcia e a mãe de Pedro, que representam a classe média conformada e deslumbrada com as convenções sociais, que devem ser preservadas.

Manuelzão e Miguilim - Guimarães Rosa

Análise da Obra

Surgido pela primeira vez em 1956 dentro da obra Corpo de Baile (que incluía também Noites do Sertão e No Urubuquaquá, no Pinhém), Manuelzão e Miguilim é um dos momentos mais tocantes de João Guimarães Rosa, superado por alguns contos de Primeiras Estórias e pelo inigualável romance Grande Sertão: Veredas.

O caráter regionalista reside na forma da obra. Em primeiro lugar, o ambiente de todas as suas narrativas é o sertão de Minas Gerais (uma minúscula parte delas passa-se no sertão da Bahia. No entanto, a vizinhança faz-nos garantir que se trata praticamente da mesma região), tendo como personagens seus habitantes. Além disso, no campo da linguagem é que está sua mais famosa recriação do universo mineiro.

A narrativa de Manuelzão e Miguilim trata de seu mundo infantil visto ainda sem aquela sistematização rígida do universo adulto.

Em contrapartida, a segunda história, Uma estória de amor, narra os preparativos para uma festa e a própria festa, idealizada por Manuelzão para consagrar uma capela por ele construída.

No sumário, Guimarães Rosa anuncia as duas narrativas Campo Geral e Uma estória de amor, como poemas.

Seus textos ambientam os grandes temas da humanidade, principalmente os existenciais e metafísicos, no sertão mineiro, tudo de forma simbólica, mítica e mística. São verdadeiras fábulas.

Esse é o aspecto que se enxerga, por exemplo, em Campo Geral. É um conto / novela / poema da formação, da iniciação, do amadurecimento de Miguilim. Tanto que o foco narrativo, de terceira pessoa, onisciente, é filtrado por ele. Tudo gira ao seu redor, tudo é enxergado obedecendo ao seu ponto de vista, desde o emprego da linguagem até a absorção e compreensão da realidade. Prova desse aspecto é o retrato que ele dá a seu irmão, dizendo que é de uma santa. A reação dos adultos, que chegam a rasgá-lo, dizendo que era pecado, faz o leitor entender, e não a personagem, que se tratava de uma imagem de mulher pelada. Tal viés acaba tornando o texto muito mais poético, pois nos faz acompanhar o crescimento do protagonista como se fosse bastante íntima nossa.

Campo Geral

Narrativa profundamente lírica, Campo Geral traduz a habilidade de Guimarães Rosa para recriar o mundo captado pela perspectiva de uma criança. Se a infância aparece com freqüência nos textos roseanos, sempre ligada à magia de um mundo em que a sensibilidade, a emoção e o poder das palavras compõem um universo próximo ao dos poetas e dos loucos, em Miguilim, nome com que passou a ser conhecida a novela, essa temática encontra um de seus momentos mais brilhantes e comoventes.

Uma estória de amor

A novela narra os preparativos para uma festa e a própria festa, idealizada por Manuelzão para consagrar uma capela por ele construída. A festa e seus preparativos são como uma coluna dorsal, ou um esqueleto, mas os músculos e nervos da narrativa são os pensamentos, sentimentos e lembranças de um velho vaqueiro que vê com preocupação o fim do caminho: "De todo não queria parar, não quereria suspeitar em sua natureza própria de um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do corpo. Resistiu. Temia tudo na morte."

Vidas Secas - Graciliano Ramos

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA


Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado declínio do nordeste condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental, temos também o romance nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.

Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem visão crítica das relações sociais, regionalismo ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe.

Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo, Alagoas. Estudou em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Após breve estada no Rio de Janeiro como revisor dos jornais "Correio da Manhã e A Tarde", passou a fazer jornalismo e política elegendo-se prefeito em 1927.

Foi preso em 1936 sob acusação de comunista e nesta fase escreveu "Memórias do Cárcere", um sério depoimento sobre a realidade brasileira. Depois do cárcere morou no Rio de Janeiro. Em 1945, integrou-se no Partido Comunista Brasileiro.

Graciliano estreou em 1933 com "Caetés", mas é São Berdado, verdadeira obra prima da literatura brasileira. Depois vieram "Angustia" (1936) e Vidas Secas (1938) inspirando-se em Machado de Assis.

Podemos justificar isto com passagens do texto:
"Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos."
"A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas"
"Resolvera de supetão aproveitá-lo (papagaio) como alimento..."
"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores".


RESUMO DA OBRA

Mudança

Em meio à paisagem hostil do sertão nordestino, quatro pessoas e uma cachorrinha se arrastam numa peregrinação silenciosa _ _ . O menino mais velho, exausto da caminhada sem fim, deita-se no chão, incapaz de prosseguir, o que irrita Fabiano, seu pai, que lhe dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar. Compadecido da situação do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais modorrenta _ .

A cadela Baleia acompanha o grupo de humanos agora sem a companhia do outro animal da família, um papagaio, que fora sacrificado na véspera a fim de aplacar a fome que se abatia sobre aquelas pessoas. Na verdade, era um papagaio estranho, que pouco falava, talvez porque convivesse com gente que também falava pouco _ _ .

Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos. Haveria comida. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira. Pensa na mulher e nos filhos.

A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de felicidade ao grupo. No céu, já escuro, uma nuvem - sempre um sinal de esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A vida melhorará para todos _ .

Fabiano

Em vão Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora _ _ . Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era um bicho _ .

A uma pergunta de um dos filhos, Fabiano irrita-se. Para que perguntar as coisas? Conversaria com Sinha Vitória sobre isso. Essas coisas de pensamento não levavam a nada. Seu Tomás da bolandeira, apesar de admirado por Fabiano pelas suas palavras difíceis, não acabara como todo mundo? As palavras, as idéias, seduziam e cansavam Fabiano.

Pensou na brutalidade do patrão, a tratá-lo como um traste. Pensou em Sinha Vitória e seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira. Eles não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho _ ? Sentia, por vezes, ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado.

Lembrando dos meninos, novamente, achou que, quando as coisas melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora, importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com Sinha Vitória sobre a educação dos pequenos.

Cadeia

Fabiano vai à feira comprar mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga na bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas. Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando esse está de partida. A idéia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro, não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava em como enganar Sinha Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava.

O soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, agüenta os insultos até o possível, terminando por xingar a mãe do soldado amarelo. Destacamento à sua volta. Cadeia. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente.

No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência _ . Amolou-se com o bêbado e com a quenga que estavam em outra cela. Pensou na família. Se não fosse Sinha Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto? Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar _ .

Sinha Vitória

Naquele dia, Sinha Vitória amanhecera brava. A noite mal dormida na cama de varas era o motivo de sua zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da bolandeira, como a de pessoas normais.

Havia um ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a uma briga por causa das "extravagâncias" de cada um, Sinha Vitória certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a _ .

Agora, ela irritava-se com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio a reza e a atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe a lembrança do bebedouro em que só havia lama. Medo da seca. Olhou de novo para seus pés e inevitavelmente achou Fabiano mau _ . Pensou no papagaio e sentiu pena dele _ .

Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa, Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinha Vitória que não deveria haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe _ . As coisas, agora, pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, até mesmo Fabiano queria uma cama nova.

O Menino mais novo

A imagem altiva do pai foi que lhe fez surgir a idéia. Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava com o auxílio de Sinha Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos garotos, impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também impressionasse o irmão mais velho e a cachorra Baleia _ . No dia seguinte, acordou disposto a imitar a façanha do pai. Para tanto, quis comunicar a intenção ao mano, mas evitou, com medo de ser ridicularizado.

Quando as cabras foram ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia, o pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se altivo como Fabiano quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal, que o repeliu. Insistente, tentou se aprumar mas foi sacudido impiedosamente, praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo, Baleia parecia desaprovar toda aquela loucura _ . Fatalmente seria repreendido pelos pais. Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza de que seria grande, usaria roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão admirados.

O Menino mais velho

Aquela palavra tinha chamado a sua atenção: inferno. Perguntou à Sinha Vitória, vaga na resposta. Perguntou a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinha Vitória, indagou se ela já tinha visto o inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia tentando alegrá-lo naquela hora difícil.

Decidiu contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito, quase igual ao do papagaio que morrera na viagem _ . Só Baleia era sua amiga naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita ? A culpa era de Sinha Terta, que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento do garoto mais velho.

Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir estrelas? Pensou novamente no inferno. Deveria ser, sim, um lugar ruim e perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha da faca _ . Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como refúgio _ .

Inverno

Todos estavam reunidos em volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que agitava a paisagem fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família próxima à fogueira. Pai e mãe conversavam daquele jeito de sempre, estranho, e os meninos, deitados, ficavam ouvindo as histórias inventadas por Fabiano, de feitos que ele nunca tinha realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais velho levantou-se para buscar mais lenha, foi repreendido severamente pelo pai, aborrecido pela interrupção de sua narrativa.

A chuva dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava Fabiano. Sinha Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão.

Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas _ . A chuva tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o soldado amarelo e demais autoridades que lhe atravessassem o caminho. A chegada das águas interrompera aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada, Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinha Vitória até pudesse ter a cama tão desejada.

Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança. Algo não cheirava bem naquele enredo _ . Sempre pensativo, o menino mais velho dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio.

Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora _ .

Festa

A família foi à festa de Natal na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum às suas figuras, o que lhes dava um ar ridículo. A caminhada longa tornava-se ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os demais fizeram o mesmo. Voltaram ao seu natural. Baleia juntou-se ao grupo _ .

Chegando à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa. Sinha Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens nos altares, encantou-os mais ainda. O pai espremia-se no meio da multidão, sentindo-se cercado de inimigos. Sentia-se mangado por aquelas pessoas que o viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém na cidade era bom. Lembrou-se da humilhação imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela última vez na cidade.

A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de jogos. Como Sinha Vitória negou-lhe uma aposta no bozó, Fabiano afastou-se da família e foi beber pinga _ . Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário _ . Queria bater em alguém, poderia matar se fosse o caso _ . Vez ou outra, interrompia suas imprecações para uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão, fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente.

Sinha Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo urinou. Em seguida, para completar o momento de satisfação, pitou num cachimbo de barro pensando numa cama igual à de seu Tomas da bolandeira .

Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acaba com a tensão. Restava, agora, aos pequenos, o maravilhamento com tudo de novo que viam. O menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas _ ?

Distante de tudo, Fabiano roncava e sonhava com soldados amarelos.

Baleia

Pêlos caídos, feridas na boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinha Vitória recolheu os meninos, desconfiados, a fim de evitar-lhes a cena.

Baleia era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram, tentando sair ao terreiro para impedir a trágica atitude do pai. Sinha Vitória lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha.

Ao primeiro tiro, que pegou o traseiro da cachorra e inutilizou-lhe uma perna, as crianças começaram a chorar desesperadamente.

Começou, lá fora, o jogo estratégico da caça e do caçador. Baleia sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia, tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A vigilância às cabras, Fabiano, Sinha Vitória e as crianças surgiam à Baleia em meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha _ . Dores e arrepios. Sono. A morte estava chegando para Baleia.

Contas

Fabiano retirava para si parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de contas com o patrão, sempre tinha a sensação de que havia sido enganado. Ao longo do tempo, com a produção escassa, não conseguia dinheiro e endividava-se.

Naquele dia, mais uma vez Fabiano pedira a Sinha Vitória para que ela fizesse as contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí foi o patrão quem estrilou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro emprego. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que Sinha Vitória era quem errara.

Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal. Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar porcos _ .

Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros, assim como fora com seu pai e seu avô.

As notas em sua mão impressionavam-no. "Juros", palavra difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Era sempre assim: bastavam palavras difíceis para lograr os menos espertos. Contou e recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Sinha Vitória é que entendia seus pensamentos.

Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga. Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. o céu, várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família. Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.

O Soldado Amarelo

Procurando uma égua fugida, Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo que o humilhara um ano atrás _ . O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o perigo.

Fabiano irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem, para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para inimigo maior.

Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda ensinou o caminho ao amarelo.

O Mundo Coberto de Penas

A invasão daquele bando de aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e cabras. Sinha Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas, mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma nova fuga.

Era só desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando ? Quem sabe a seca não chegasse...Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de arribações só confirmava a triste situação _ . Elas cobriam o mundo de penas, matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os.

Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar maldito _ . Sinha Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.

Fuga

O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem que se faria no dia seguinte.

Partiram de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do sul. O grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade.

A vermelhidão do céu, o azul que viria depois assustavam Fabiano _ . Baleia era uma imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinha Vitória também fraquejava. Queria, precisava falar _ . Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação.

Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos _ ?

Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam quando crescessem? Sinha Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau agouro das aves que voavam no céu.

Sinha Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado. Sinha Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haveria uma nova terra, cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como eles.

O Voluntário - Ingês de Souza

A velha tapuia1 Rosa já não podia cuidar da pequena lavoura que lhe
deixara o marido. Vivia só com o filho, que passava os dias na pesca do pirarucu
e do peixe-boi, vendido no porto de Alenquer e de que tiravam ambos o
sustento, pois o cacau mal chegava para a roupa e para o tabaco. Apesar da
pobreza rústica2 da casa, com as suas portas de japá3 e as paredes de sopapo,
com o chão de terra batida, cavada pela ação do tempo, tinha a tapuia em alguma
conta o asseio. (...) Rosa tecia redes, e os produtos da sua pequena indústria
gozavam de boa fama nos arredores. A reputação da tapuia crescera com a feitura
de uma maqueira4 de tucum5 ornamentada com a coroa brasileira, obra de
ingênuo gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca, e provocara a
inveja da célebre Ana Raimunda, de Óbidos, a qual chegara a formar uma
fortunazinha com aquela especialidade, quando a indústria norte-americana
reduzira à inatividade os teares rotineiros do Amazonas (...) Pedro era em
18656 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha olhos
pequenos, tais quais os do pai7, com a diferença de que eram vivos, e de uma
negrura de pasmar. A face era cor de cobre, as feições achatadas e grosseiras, de
caboclo legítimo, mas com um cunho de bondade e de candura, que atraía o
coração de quantos lhe punham a vista em cima. Demais, serviçal e alegre até
ali. (...) É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a
vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas,
isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma num apático
recolhimento (...) O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza contemplativa8 revela-se no olhar fixo e vago em
que se lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os
seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão
comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão. (...) Ninguém o podia dizer, mas é certo que até o princípio
do ano de 1865, correram tranqüilos os dias no cacaual da velha Rosa. Quem não sabe o efeito produzido à beira do rio
pela notícia da declaração da guerra entre o Brasil e o Paraguai?9 Nas classes mais favorecidas da fortuna, nas
cidades principalmente, o entusiasmo foi grande e duradouro. Mas entre o povo miúdo, o medo do recrutamento para
voluntário da pátria foi tão intenso que muitos tapuios se meteram pelas matas e pelas cabeceiras dos rios e ali viveram
como animais10 bravios sujeitos a toda a espécie de privações. (...) Descuidado e contente, Pedro labutava em paz,
apesar das desgraças do tempo, ouvidas aos domingos, depois da missa, no adro da matriz. E quando lhe perguntavam
se não receava o recrutamento11, dizia com a candura habitual, que nunca fizera mal a ninguém, e era filho único de
mulher viúva. Não contava, porém, com a má vontade de Manuel de Andrade, mulato que era seu rival na pesca das
tartarugas (...) Pelas 7 horas da manhã, a velha Rosa tratava do almoço, e Pedro, sentado à soleira da porta, preparavase
para caçar papagaios, limpando uma bela espingarda de dois canos, quando viu adiantar-se para o seu lado o
capitão Fabrício, com os modos risonhos e corteses de um bom vizinho. Pedro ergueu-se surpreso e acanhado e pôsse
a balbuciar cumprimentos ao fazendeiro, cujo sorriso o enleava.

Voluntário - Inglês de Souza

A velha tapuia1 Rosa já não podia cuidar da pequena lavoura que lhe
deixara o marido. Vivia só com o filho, que passava os dias na pesca do pirarucu
e do peixe-boi, vendido no porto de Alenquer e de que tiravam ambos o
sustento, pois o cacau mal chegava para a roupa e para o tabaco. Apesar da
pobreza rústica2 da casa, com as suas portas de japá3 e as paredes de sopapo,
com o chão de terra batida, cavada pela ação do tempo, tinha a tapuia em alguma
conta o asseio. (...) Rosa tecia redes, e os produtos da sua pequena indústria
gozavam de boa fama nos arredores. A reputação da tapuia crescera com a feitura
de uma maqueira4 de tucum5 ornamentada com a coroa brasileira, obra de
ingênuo gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca, e provocara a
inveja da célebre Ana Raimunda, de Óbidos, a qual chegara a formar uma
fortunazinha com aquela especialidade, quando a indústria norte-americana
reduzira à inatividade os teares rotineiros do Amazonas (...) Pedro era em
18656 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha olhos
pequenos, tais quais os do pai7, com a diferença de que eram vivos, e de uma
negrura de pasmar. A face era cor de cobre, as feições achatadas e grosseiras, de
caboclo legítimo, mas com um cunho de bondade e de candura, que atraía o
coração de quantos lhe punham a vista em cima. Demais, serviçal e alegre até
ali. (...) É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a
vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas,
isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma num apático
recolhimento (...) O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza contemplativa8 revela-se no olhar fixo e vago em
que se lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os
seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão
comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão. (...) Ninguém o podia dizer, mas é certo que até o princípio
do ano de 1865, correram tranqüilos os dias no cacaual da velha Rosa. Quem não sabe o efeito produzido à beira do rio
pela notícia da declaração da guerra entre o Brasil e o Paraguai?9 Nas classes mais favorecidas da fortuna, nas
cidades principalmente, o entusiasmo foi grande e duradouro. Mas entre o povo miúdo, o medo do recrutamento para
voluntário da pátria foi tão intenso que muitos tapuios se meteram pelas matas e pelas cabeceiras dos rios e ali viveram
como animais10 bravios sujeitos a toda a espécie de privações. (...) Descuidado e contente, Pedro labutava em paz,
apesar das desgraças do tempo, ouvidas aos domingos, depois da missa, no adro da matriz. E quando lhe perguntavam
se não receava o recrutamento11, dizia com a candura habitual, que nunca fizera mal a ninguém, e era filho único de
mulher viúva. Não contava, porém, com a má vontade de Manuel de Andrade, mulato que era seu rival na pesca das
tartarugas (...) Pelas 7 horas da manhã, a velha Rosa tratava do almoço, e Pedro, sentado à soleira da porta, preparavase
para caçar papagaios, limpando uma bela espingarda de dois canos, quando viu adiantar-se para o seu lado o
capitão Fabrício, com os modos risonhos e corteses de um bom vizinho. Pedro ergueu-se surpreso e acanhado e pôsse
a balbuciar cumprimentos ao fazendeiro, cujo sorriso o enleava.

A QUADRILHA DE JACÓ PATACHO - Inglês de Souza

Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva.

Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.

- Ouvem? - perguntou.

O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:

- É uma canoa que sobe o rio.

- Quem há de ser?

- A estas horas, - opinou a sora Maria dos Prazeres, - não pode ser gente de bem.

- E por que não, mulher? - repreendeu o marido, - isto é alguém que segue para Irituia.

- Mas quem viaja a estas horas? - insistiu a timorata mulher.

- Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.

A sora Maria continuou a mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas. Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.

Mas o ruído do bater dos remos n'água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:

- Onde vais, ó Felix?

Os rapazes lançaram vistas cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o movimento, do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e para os irmãos.

Ouviram-se passos pesados no terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas uma voz rústica saiu das trevas.

- Boa-noite, meu branco.

Quem está aí? - indagou o português. - Se é de paz, entre com Deus.

Então dois caboclos apareceram no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças e camisa de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.

Tranqüilo, o português afastou-se para dar entrada nos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia, perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.

Vinham de Santarém, e iam a Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem.

Os dois homens falavam serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado, baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a criatura mais inofensiva deste mundo.

Depois que a sora Maria mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente - seu João - levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro, insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e seu Pinto era um branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse, acrescentava como um riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.

No fundo quadrava perfeitamente à sora Maria a resolução do seu João, não só porque pensava que mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao marido:

- Deixa lá, homem, cada um sabe de si e Deus de todos.

O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.

- Agasalhe-se bem, patrício, - gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio ter com a família.

Logo depois desejavam boa-noite uns aos outros; o hóspede que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra seu João, já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta.

A Anica depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona.

E por uma singularidade, que a rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que o cérebro imaginava.

Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas, aquela boca imunda e servil, a cor azivranhada, a estatura baixa e vigorosa, sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde? Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem; parecia recordar-se agora. Fora em Santarém, havia coisa de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa popular, o sahiré. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto, patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.

Neste ponto de suas reminiscências, a Anica foi assaltada por uma idéia medonha que lhe fez correr um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha inflingia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade?

A idéia da identidade do tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho, gelou-a de terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse aproveitar à sua família.

Um silvo agudo, imitante do canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta, pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela, rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano quando cogitou de estar o outro tapuio, o seu João, perto da casa para responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela, espreitando pelo vão.

A noite estava belíssima.

O vento forte afugentara as nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.

A princípio a rapariga, deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se dirigiam para a casa.

Eram quinze ou vinte, mas à rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua imaginação fazia um homem.

Não havia que duvidar. Era a quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.

Todo o desespero da situação em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução heróica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:

- Aqui d'el-rei! Os de Jacob Patacho!

A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser pressentido.

A indignação do pudor ofendido e a repugnância indizível que se apoderou da moça ao sentir o contato dos lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos e afilados da vítima.

Mas se a sensualidade feroz do Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:

- Acudam, acudam, que me matam!

Bruscamente o Saraiva largou a mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho, com inaudita coragem, opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma.

O português e os filhos mal despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do tapuio que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.

Seu João, o companheiro de Saraiva mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida, voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o grito de guerra da cabanagem:

- Mata marinheiro! Mata! Mata!

Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes quinados de massaranduba, e os três portugueses que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.

O Saraiva recebeu um tiro à queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha, agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo selvagem.

Quando passei com meu tio Antônio em junho de 1932 pelo sítio de Félix Salveterra, o lúgubre aspecto da habitação abandonada, sob cuja cumieira um bando de urubus secava as asas ao sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranqüila morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.

Só muito tempo depois conheci os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da desgraça.

A sora Maria dos Prazeres e a Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana, lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência.

Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva.

Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.

- Ouvem? - perguntou.

O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:

- É uma canoa que sobe o rio.

- Quem há de ser?

- A estas horas, - opinou a sora Maria dos Prazeres, - não pode ser gente de bem.

- E por que não, mulher? - repreendeu o marido, - isto é alguém que segue para Irituia.

- Mas quem viaja a estas horas? - insistiu a timorata mulher.

- Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.

A sora Maria continuou a mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas. Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.

Mas o ruído do bater dos remos n'água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:

- Onde vais, ó Felix?

Os rapazes lançaram vistas cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o movimento, do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e para os irmãos.

Ouviram-se passos pesados no terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas uma voz rústica saiu das trevas.

- Boa-noite, meu branco.

Quem está aí? - indagou o português. - Se é de paz, entre com Deus.

Então dois caboclos apareceram no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças e camisa de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.

Tranqüilo, o português afastou-se para dar entrada nos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia, perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.

Vinham de Santarém, e iam a Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem.

Os dois homens falavam serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado, baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a criatura mais inofensiva deste mundo.

Depois que a sora Maria mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente - seu João - levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro, insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e seu Pinto era um branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse, acrescentava como um riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.

No fundo quadrava perfeitamente à sora Maria a resolução do seu João, não só porque pensava que mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao marido:

- Deixa lá, homem, cada um sabe de si e Deus de todos.

O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.

- Agasalhe-se bem, patrício, - gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio ter com a família.

Logo depois desejavam boa-noite uns aos outros; o hóspede que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra seu João, já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta.

A Anica depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona.

E por uma singularidade, que a rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que o cérebro imaginava.

Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas, aquela boca imunda e servil, a cor azivranhada, a estatura baixa e vigorosa, sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde? Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem; parecia recordar-se agora. Fora em Santarém, havia coisa de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa popular, o sahiré. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto, patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.

Neste ponto de suas reminiscências, a Anica foi assaltada por uma idéia medonha que lhe fez correr um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha inflingia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade?

A idéia da identidade do tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho, gelou-a de terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse aproveitar à sua família.

Um silvo agudo, imitante do canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta, pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela, rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano quando cogitou de estar o outro tapuio, o seu João, perto da casa para responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela, espreitando pelo vão.

A noite estava belíssima.

O vento forte afugentara as nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.

A princípio a rapariga, deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se dirigiam para a casa.

Eram quinze ou vinte, mas à rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua imaginação fazia um homem.

Não havia que duvidar. Era a quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.

Todo o desespero da situação em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução heróica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:

- Aqui d'el-rei! Os de Jacob Patacho!

A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser pressentido.

A indignação do pudor ofendido e a repugnância indizível que se apoderou da moça ao sentir o contato dos lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos e afilados da vítima.

Mas se a sensualidade feroz do Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:

- Acudam, acudam, que me matam!

Bruscamente o Saraiva largou a mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho, com inaudita coragem, opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma.

O português e os filhos mal despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do tapuio que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.

Seu João, o companheiro de Saraiva mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida, voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o grito de guerra da cabanagem:

- Mata marinheiro! Mata! Mata!

Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes quinados de massaranduba, e os três portugueses que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.

O Saraiva recebeu um tiro à queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha, agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo selvagem.

Quando passei com meu tio Antônio em junho de 1932 pelo sítio de Félix Salveterra, o lúgubre aspecto da habitação abandonada, sob cuja cumieira um bando de urubus secava as asas ao sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranqüila morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.

Só muito tempo depois conheci os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da desgraça.

A sora Maria dos Prazeres e a Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana, lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência.